Monday, December 10, 2012

Quixotes e pixotes


 Diminuição da maioridade penal, sistema prisional e o Projeto Trilhas, 
da Associação Horizontes


Eu tenho um filho de 8 anos. Ele nunca experimentou fome, porque eu ou o pai dele, meu marido, estamos atentos às necessidades que ele tem desde o dia em que ele foi concebido. Ele só sente frio quando teima em sair no inverno sem jaqueta. Mas talvez teime porque saiba que um dos pais vai estar por perto com um casaco quentinho à espera de que ele resolva vesti-lo. Cada vez que sentimos que ele tem um problema na escola, imediatamente entramos em contato com os professores e ao menor sinal de um resfriado mais forte ligamos para a pediatra. Ele nunca teve uma cárie, porque cuidamos dos dentinhos dele desde que surgiram.  Sofreu uma única infecção de ouvido que foi prontamente tratada com o mínimo possível de antibióticos para não desequilibrar seu frágil organismo. Ele é inteligente, sadio, confiante. Ele aprende piano e canta no coral infantil da cidade.  Nossa família não reza nem vai a igreja, mas nosso filho tem um profundo sentimento de respeito pela natureza, pelos animais e por seus semelhantes. É nosso compromisso provê-lo com uma base moral consistente, assim tentamos ser modelo de tudo o que  ensinamos e quando, por algum motivo, erramos, nos desculpamos e mostramos para André que erros acontecem e que pedir e aceitar perdão faz parte da convivência em sociedade. Mesmo com todos os cuidados, nem sempre ele diz obrigado ou por favor, embora em geral tenha boas maneiras. Expandindo essa ideia, imagino que no futuro, quando puder escolher, ele possa, apesar de todos os nossos esforços, fazer más escolhas. Talvez ele se esqueça do que aprendeu, talvez ele se rebele contra nossa forma de educar... Sei lá, é a lei do livre arbítrio e tudo pode acontecer.  O que sei é que quero que ele estude, se eduque, viaje, tente compreender o mundo e seja uma pessoa feliz, um cidadão participante, um ser humano decente.
Difícil mesmo é imaginar como uma criança que foi indesejada, que cresceu sofrendo coisas que nem gente grande está preparada para suportar, num ambiente de violência e privada de cuidados básicos pode se transformar em um adulto saudável e bem integrado ao meio social. Eu estudei um bocado nesta vida mas nunca aprendi muito sobre psicologia, pelo menos não no sentido acadêmico da palavra. Ainda assim, me parece óbvio que uma criança submetida a maus tratos e a desrespeito de todo tipo, que não tenha sequer se alimentado propriamente,  tenha poucas chances de seguir um “bom caminho”.  Isso já é suficiente para me convencer de que mandar um menino delinquente para uma prisão adulta aos 16 anos não vai resolver o problema dele e menos ainda reverter o quadro de violência que assola o Brasil. Ao contrário, vai piorar um sistema prisional já sobrecarregado e corrompido. Um estudo de 2007 dá conta que 90% dos detentos voltam a delinquir e acabam regressando à prisão. Esse dado sozinho mostra a ineficácia alarmante do nosso sistema penitenciário. Dados do mesmo estudo apontam que 95% dos que hoje povoam as prisões são de classes pobres,excluídos sociais, analfabetos ou com baixo nível de instrução. Há um número imenso de presos que aguarda benefícios judiciais a que têm direito, como prisão semi-aberta. Outros estão depositados em distritos policiais sem nenhuma estrutura para recebê-los.  Um dos últimos censos penitenciários revelou que  40% de todos os prisioneiros, sentenciados ou não, estão sob guarda da polícia civil, ou seja, profissionais não treinados para o serviço carcerário, nos DPs da vida.  A transferência desses detentos é prorrogada e em muitos casos jamais concretizada, por falta de leitos nas penitenciárias. Cerca de 20% de todos os prisioneiros  são portadores do vírus da Aids. Revista CEJ  (Rafael Damaceno de Assis, Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, p. 74-78, out./dez. 2007).
Esses números não são os mais recentes , mas duvido que a situação tenha melhorado significativamente nos últimos cinco anos. Os acontecimentos das últimas semanas em São Paulo, em que o crime organizado age de dentro das prisões, nas barbas do poder público estadual e com a sua conivência, apenas atualizam a gravidade e o horror dessa realidade. Parece absurdo imaginar que este sistema carcerário falido possa receber um contingente extra de sentenciados na faixa etária de 16 a 18.  Se isso vier a acontecer, obviamente o caos tende a se expandir e, ainda mais evidente, é a certeza de que qualquer recuperação vai ser vetada a esses adolescentes.
É intrigante como as pessoas, mesmo aquelas razoavelmente bem informadas, tendem a se apegar a explicações simplistas para justificar suas posições diante de questões complexas. É comum, por exemplo, ouvir que a alteração da idade penal intimidaria os jovens criminosos porque  eles pensariam duas vezes antes de um ato ilegal, sabendo que seriam julgados como adultos. Argumento  semelhante aqui nos Estados Unidos, dos partidários da pena de morte, ignora estudos apontando que não há relação comprovada entre a diminuição de crimes violentos nos estados que  executam seus criminosos. Duvido que meninos ou meninas sem estrutura, que sofrem abusos de todo tipo e sem nenhum exemplo de conduta vão deixar de cometer um crime por ponderar  suas consequências legais. Outra ideia batida é a que os adultos deixariam de usar menores  em seus crimes se eles não fossem legalmente tratados  como menores. De fato, não creio que os exploradores de menores estejam preocupados em poupá-los da prisão ou da punição.
Infelizmente,essa lógica passa a prevalecer sobre medidas mais profundas e de múltiplos níveis de abrangência, como por exemplo a necessidade da pressão da sociedade civil organizada sobre  o governo, em todos os níveis, exigindo educação inclusiva e de qualidade e a ação efetiva contra o desfacelamento do núcleo familiar , com a criação de mais programas e atividades para depois do período escolar e de mais espaços públicos seguros na área metropolitana e nos bairros pobres das grandes cidades. Em vez de acoes preventivas e de acompanhamento o que se busca é que o poder público se ocupe  em encarcerar mais jovens, que serão devolvidos às ruas ainda mais violentos.
Em um dos meus contos favoritos de Machado de Assis, “Ideias de Canário”, um canário falante só é capaz de reconhecer o ambiente que o cerca no momento presente. Ele não se lembra dos lugares onde viveu antes e imagina que o mundo não vá além de seu campo de visão. O canário alienado de Machado servia como metáfora para uma outra época e outros problemas, mas como a maioria do que Machado escreveu ainda é curiosamente contemporâneo.  É mais do que hora de a sociedade brasileira passar a enxergar além do muro do seu próprio condomínio, que vai ficando cada vez mais alto e ineficiente, porque o que acontece do lado de fora também é responsabilidade nossa.
Não creio que imaginar uma sociedade em que todas as crianças, como meu filho, tenham direito e acesso a comida, segurança, carinho, proteção integral, física e psicológica, seja quixotesco. Nossos moinhos de vento são tragédias pessoais e comunitárias bem palpáveis. Irreal é acreditar , mais uma vez, que uma medida legal vá convenientemente abolir o problema do menor abandonado.

Horizontes
Mas falando em Quixote, eu por minha vez respeito e admiro esses “quixotes”, profissionais e voluntários, que longe de se iludirem com simplificações criam estratégias de ação social e trabalham por soluções. Entre eles, quero destacar  a Associação Horizontes http://www.ah.org.br/,  uma organização sem fins lucrativos com sede em São Paulo. Eu tomei conhecimento do trabalho desta ONG por meio de minha amiga Heloísa Sousa Dantas, coordenadora de projetos dessa organização e, conhecendo a  Helô,  sabia de cara que o projeto é sério. No dia 14 de dezembro a Horizontes vai promover um bazar, por meio de seu projeto Trilhas, que objetiva levantar fundos para projetos voltados a esses jovens que precisam de apoio efetivo para encontrar um lugar na sociedade. Para que possam, em última instância, levarem vidas produtivas e felizes. Faço um apelo aos que têm espírito natalino ou não a assistirem o vídeo da Horizontes/Trilhas http://www.youtube.com/watch?v=5DCYhM11ZTo e se engajarem  seja contribuindo com dinheiro ( o site diz como se pode doar), com produtos para o bazar ou com a divulgação do trabalho da Horizontes. O primeiro passo é reagir contra a inércia do senso comum, que prefere crer, como o canário machadiano, que ao retirar um problema de seu campo de visão, este automaticamente deixa de existir.