Sunday, June 24, 2012

Alicinha, a nepótica



Minhas introduções aos posts vêm se tornando rotina neste blog e eu me desculpo se parecem excessivas. Simplesmente quero dar um contexto ao texto, quando, a meu ver, se faz necessário. No caso em questão, apenas queria justificar que não foi exatamente minha ideia escrever sobre nepotismo. Este era o tema de um concurso de crônicas do qual eu queria participar. Eu o escrevi muito antes do prazo final do concurso, porque queria tempo para trabalhar nele um tanto, antes de o submeter a julgamentos... Além disso, segundo o regulamento, a crônica tinha de ser minúscula e meu desafio foi cortá-la, cortá-la... Eu fiz isso por semanas, até que a vida me chamou para competições mais urgentes e quando voltei ao texto notei que já tinha perdido o prazo de inscrição. Eu devia ter imaginado que não poderia meramente me esbaldar e relaxar com prazo tão folgado...Banquei a lebre quando estou mais para tartaruga. Por fim, de novo, pra não deixar a iniciativa dormindo nos arquivos do meu computador, decidi publicá-la aqui...e, de vingança, (mil perdões!), a versão original e mais longa. Boa leitura!


Ninguém vai poder dizer que Alicinha não tentou. A pobre hoje anda pela cidade cabisbaixa, óculos escuros que lhe cobrem metade da cara gordinha, bonitinha até. Tudo porque ela foi criada naquela crença meio ingênua meio cristã de que tinha de ajudar a família. Foi assim desde menina. Filha do meio de cinco irmãos, ficava ali meio perdida sem bem ter atenção nem de pai nem de mãe. A madrinha é que às vezes se apiedava dela e levava Alicinha pra passar um dia inteiro no sítio, sem obrigação, só brincando no balanço de pneu velho  que ficava perto do galinheiro. Os puleiros da  madrinha, para alegria da menina, não tinham mau cheiro como os outros.
Quando Alicinha, dedicada colaboradora do centro comunitário, primeiro pensou em se candidatar a vereadora ela nem se lembrou da família. Quer dizer, de verdade, a ideia não foi mesmo dela. Lúcio Rufino veio com a novidade depois de ver como o pessoal gostava de Alicinha. “Você tem penetração popular, menina!”, ele veio dizendo com aquela voz de locutor de rádio. Ela até se espantou com essa definição, que bem podia ser piada do Lúcio Rufino. Ele tinha dessas tiradas que Alicinha se esforçava pra entender, mas quase sempre lhe escapavam. Se tivesse ficado só nisso ela teria certeza que era coisa para não se levar a sério. Só que ele insistiu e começou a espalhar pelo centro que Alicinha daria uma excelente candidata a vereadora e que seria eleita com certeza.
Alicinha nunca tinha sonhado com tanto. Pensava, claro, em ser presidente do centro, afinal já estava na liderança do grupo por tanto tempo. Ela tinha participado de tanta reunião que a mãe dela vivia dizendo que era por isso que não se casava. Bobagem, pensava Alicinha, se foi mesmo numa das reuniões onde ela primeiro viu Marcelo, que foi a paixão da sua vida. Pena que o Marcelo não percebeu a jóia que Alicinha era e acabou casando com a Marieta, do coro da igreja. Todo mundo sabe que ele se arrependeu, apesar de a Marieta ser uma soprano de fazer a gente chorar...
O fato é que Lúcio tinha bom olho pra essas coisas de política. Por influência dele, logo o presidente do centro entrou em contato com um fulano de um partido político desconhecido, que se instalava em Pradinho e que ficou bem feliz em indicar Alicinha. Ela teve de se filiar ao partido e queria usar seu nome completo,  mais digno de figurar na Câmara Municipal: Alice Maria Noronha Gama, que cá pra nós soa importante. Mas os homens lá (sim porque mulher, mesmo, só ela) disseram que deveria usar o nome pelo qual era conhecida e que tinha mais “apelo popular” e pra completar a penetração com o apelo popular, ficou Alicinha mesmo.
Foto: ddpavumba at freedigitalphotos.net
A família dela no princípio riu da candidatura. Mas no fim todo mundo se uniu: irmãos, sobrinhos, tios, primos e primas... Nenhuma campanha foi mais animada em Pradinho e Alicinha comemorou um feito ainda mais importante: foi a segunda vereadora mais votada em toda a história da cidade. Tudo bem que Pradinho virou cidade menos de 50 anos atrás, mas Alicinha não tinha nem 30! Então, claro, motivo pra uma festa de também bater todos os recordes.
Quando tomou posse, pelo menos quarenta pessoas na pequena galeria da câmara eram parentes de Alicinha. Alguns, que nem viviam em Pradinho, foram lá prestigiar o grande momento da “prima”. No primeiro dia despachando no escritório, com a irmã mais nova, Alzira, que tinha sido braço-direito de campanha e agora, por merecimento, era assistente de Alicinha, já era possível perceber que a parentalha não se dispersaria tão fácil. 
Alzira logo informou que Nezinho, o marido dela, tinha se dedicado muito à campanha também, então não teria nada demais contratá-lo para chefe de gabinete. Alicinha não queria magoar Alzira, mas Nezinho nem  tinha terminado o ensino médio e nunca parava em emprego nenhum.  Rodolfo, o irmão mais velho, concordou que a vaga não era pra Nezinho coisa nenhuma. Cargo de confiança para um cunhado vagabundo como ele? Alzira chorou, ameaçou ir embora, mas depois de conversar muito com Rodolfo acabou concordando que ele, sim, daria conta do recado. Ele tinha feito um curso de Contabilidade em Belo Horizonte e enquanto cuidava do caixa do armazém da família, bem que podia ajudar a irmã nessa empreitada. Era quase uma obrigaçãofamiliar, senão cívica. Pelo menos foi isso o que ele disse. Nezinho reclamou e Lúcio Rufino, afinal de contas idealizador da campanha de Alicinha, ficou mais inconformado ainda por não ser ele próprio o chefe de gabinete.  Imagine o prestígio que aquele vozeirão não daria ao mandato de Alicinha.
Foi preciso a ajuda de Alzira e Rodolfo para enfrentar o primeiro conflito. Nezinho acabou sendo empregado como motorista da vereadora Alicinha e Lúcio Rufino, coordenador de comunicação. Como Nezinho  dirigia bem e Lúcio Rufino era super carismático, todo mundo ficou feliz. Quer dizer, quase  todo mundo. Foi assim que uma semana depois a prima Gisele, um doce de menina, que tinha tanto futuro e lindos olhos azuis, foi nomeada recepcionista.  A sobrinha mais velha, Viviane,  ficou encarregada das pesquisas de opinião. E a gente de Pradinho tinha tanta opinião que ela acabou  precisando da ajuda de Valter, seu namorado, que expandiu o setor de pesquisas consideravelmente.
Hoje fica difícil saber exatamente em que momento Alicinha virou nepótica. A mãe dela, em princípio, se horrorizou. Não era nepótica aquela  filha de dona Dalila, que gostava de meninas? Depois de esclarecer a confusão com a mãe e de consultar a palavra nepotismo no google , Alicinha teve de se explicar para um comitê de investigação .
Pobre Alicinha, encerrou o mandato tão promissor  depois de menos de um ano, dois meses , três dias e vinte e oito contratações. Destas, segundo constam nos autos, dezenove só de familiares. Mas no dia da renúncia  a família não apareceu. Nem mesmo Alzira, a assistente, que resolveu marcar manicure bem no horário do discurso, compungido, de despedida da jovem  vereadora.
 Alicinha caminhou também sozinha pra casa, afinal Nezinho não era mais seu motorista. Sorte dela  que a madrinha a esperava no portão de casa, com uma cesta de ovos frescos e uma receita de casadinhos.