Saturday, March 31, 2012

A última viagem de Zé Vital

Image:Nuttakit  http://www.freedigitalphotos.net/images/view_photog.php?photogid=1556
José Vital é um nome comum. Deve haver um bom número deles, espalhados por aí, especialmente no Nordeste. Se calhar, muitos, também como este, Zé Vital Neto. Não sei se esses Zés nordestinos, netos de outros Josés, se parecem com meu tio mais velho: moreno, baxinho, enfezadinho. Falava alto e gesticulava muito, de forma que mesmo quando a conversa era amigável parecia que estava brigando. E, sim, como era briguento meu tio e quanta personalidade!

Caminhoneiro desde que eu possa me lembrar, sua pequena estatura parecia ser compensada pelo tamanho do caminhão.  Vai ver que foi por isso -- pra ver o mundo lá do alto --  que tio Zé passou boa parte de seus recém-completados 80 anos na boleia de um caminhão. Fazia longas viagens carregando de tudo entre São Paulo e algum ponto remoto  do Nordeste. Assim, de certa forma, nunca de fato criou raízes num canto ou n’outro. Nascido em Cupira, Pernambuco, domiciliado em São Paulo, capital, era a estrada sua verdadeira morada.

Ao contrário do tio Zé, caminhões nunca me fascinaram, mas eu me lembro perfeitamente de um dia em que ele chegou a nossa casa dirigindo um Ford Galaxy novinho, cor gêlo. Era a primeira pessoa da minha família a desfilar em carrão tão imponente. E, claro, meu coração acelerou quando fomos convidados para uma voltinha no carro novo. Sentada no banco traseiro, tentava levantar a cabeça para me assegurar de que as pessoas do bairro me veriam, radiante dentro do carro de luxo. No painel traseiro, havia uma oncinha de pelúcia cujos olhos vermelhos acendiam cada vez que se freava o carro...tão anos 70...

Outra coisa que sempre me lembro é que tio Zé era o maior fã do meu cabelão. Na infância, eu tinha o cabelo pela cintura, e absolutamente odiava as sessões penteadeira, quando minha mãe tentava domar minhas madeixas eternamente grossas e mal educadas. Quando entrei pra escola e minha mãe sabiamente mandou cortar meu cabelo ao estilo joãozinho, tio Zé desaprovou a ideia. E sempre que podia me mostrava uma foto que levava na carteira, na qual eu exibia a juba negra chegando na cintura . Ele mirava a foto com certo desconsolo e balançava a cabeça com um suspiro ressentido. Um ressentimento ao qual ele voltava cada vez que nos encontrávamos, o que nos últimos anos foi cada vez mais raro.

Tio Zé também era o mais tradicional entre os irmãos de meu pai. Parecia se orgulhar de certos “valores” da sua terra e isso, algumas vezes, nos causava embaraço. Ele nos fazia tomar a bênção ao velho estilo: ou seja tinha-se que ir lá beijar a mão do tio e ser abençoada por ele, de forma peculiar: "Deus te faça feliz!", dizia num tom sibilante, que por um bom tempo eu era incapaz de compreender. No caso do tio Zé, de quebra, a gente ganhava um cheiro. A medida em que fomos crescendo o ritual parecia intolerável, mas ninguém tinha coragem de recusá-lo. Quem conheceu Zé Vital sabe que comprar uma briga com ele não era exatamente boa ideia. Um dia, eu já tinha 15 anos, e estava chegando na loja que meus pais tinham à  época. De longe, reconheci o perfil de meu tio se aproximando, e bateu pânico. Fingi que não o vi, mas foi em vão. Ele me viu e veio em minha direção a passos largos. Por um minuto achei que ele me livraria do mico...Puro engano, na frente de todo mundo eu, já naquela época quase mais alta que ele, tive que baixar a cabeça, lhe beijar a mão e, claro, levar um cheiro.

Porque meu tio sempre foi conservador, eu jamais tentei compartilhar com ele minhas ideias que ainda hoje não são muito palatáveis em ambos os lados da família. Talvez covardemente preferi que tio Zé tivesse de mim a ideia que ele queria ter: uma boa sobrinha, acima de tudo. Sei o quanto ele se mostrava apreensivo, por exemplo, ao ver que eu completei 30 anos sem me casar e, pior, morando fora da casa de meus pais.

Mas um homem com tamanha personalidade pode surpreender, felizmente. Anos atrás, numa das campanhas de Lula à presidência, ele me disse enfaticamente que apoiava Lula à presidência. Eu que nunca, com toda minha empolgação, consegui convencer meu próprio pai a votar no Lula, confesso que naquele momento mal podia conter a alegria. Ver meu tio, tão turrão, tão ideologicamente diferente de mim, estar do mesmo lado que eu foi mais do que eu esperava. Ainda hoje pensar nisso me emociona. Nunca mais falamos de política e nem sei se ele mudou de ideia. Naquele dia, porém, eu teria voluntariamente lhe tomado a bênção com o coração pleno de orgulho.

Poucas semanas atrás minha irmã me ligou do Brasil e comentou que tio Zé iria celebrar 80 anos. Nenhum dos meus avós jamais realizou o feito. Minha avó materna chegou perto: morreu quatro dias antes do aniversário. Por isso, a comemoração era também um pouco nossa. Afinal, podíamos agora apostar um pouco mais na nossa longevidade. Minha irmã também contou que a única apreensão de tio Zé é que depois de 80 anos ele não poderia,  por lei, ter uma habilitação que lhe permitisse dirigir caminhões, o que encerraria sua longa relação com as estradas e aposentadoria não era algo que estivesse em seus planos. A vida, no entanto, foi generosa com tio Zé. Seu registro de nascimento apontava erradamente que ele havia nascido um mês depois, um erro, aliás, que  era bastante comum nas pequenas cidades brasileiras. Dessa forma, tio Zé ganhou mais um mês para fazer o que chamamos então de sua útlima viagem sem saber que de verdade seria.
Eu e minha irmã, ponderadas, racionais, discutíamos que seria melhor para todos saber que finalmente ele estaria seguro em casa, aproveitando a calma de seus 80 anos. Ainda bem que ele não estava por perto ou nos teria lançado um daqueles olhares,típico dos Vital, embora eu tenha certeza de que na presença dele  nos teríamos calado.

Foi numa dessas rotas desconhecidas da maioria dos brasileiros, numa parte qualquer da Bahia, sozinho, atrás do volante de seu caminhão, que ele se despediu da vida. Um AVC aparentemente fulminante lhe deu tempo apenas para encontrar o apoio de um velho guard rail de uma vicinal. Na festa de seus 80 anos, ele teria confidenciado a familiares que queria morrer na estrada. Ninguém seria louco de contrariar o pequeno e arretado José Vital de Cupira, filho de  João e de Dona Nila. Nem mesmo a morte. 
A bênção, meu tio, e boa viagem!

Tuesday, March 13, 2012

A Fuga das Minhocas: literatura infantil e engajada


Meu Pé de Laranja Lima , de José Mauro de Vasconcelos, foi  o primeiro livro de verdade que li; eu acho que já tinha uns 8 anos . Não era exatamente um livro infantil mas era, literalmente, o único disponível na minha casa. Eu amava ler, com perdão do lugar comum. Um amor bem difícil numa casa onde livro era objeto de luxo . Mas, sabe como é,  amor impossível é sempre mais excitante! Sem ter acesso a livros ou a bibliotecas, eu tinha de ser criativa para pôr minhas mãos magrinhas em cima de um exemplar de livro qualquer. Assim, naturalmente, nunca me preocupei muito se o livro era pra criança ou não. Lia o que aparecia.
Hoje, sempre às voltas com os livros que meu filho lê, me dou conta de que além da penúria das estantes lá de casa, a  literatura infantil brasileira também deixava muito a desejar. E nas visitas ao Brasil, quando busco  alguns títulos para que meu filho pratique a leitura em português, o que vejo não me entusiasma. É surpreendente, pra não dizer desanimador, que ainda hoje seja comum as pessoas citarem como expoentes da literatura infantil  tupiniquim os mesmos autores: Monteiro Lobato (que eu, sim, acho racista...) e Ruth Rocha... Não quero desdenhar dos autroes pátrios porque sei que tem gente boa por aí  e tenho esperança de que o avanço econômico vá em algum momento se refletir em investimento em mais títulos e melhor qualidade editorial nessa área. Quem sabe a população, as associações de bairro, o movimento organzado em algum momento percebam a importância das bibliotecas públicas e pressionem os governantes a reequipá-las,facilitando o acesso a elas e as tornando parte da vida das cidades.
Para provar meu otimismo, hoje quero comentar , infelizmente com muito atraso, o lançamento do livro da minha amiga Raquel Ribeiro (olha ela aqui de novo!) A Fuga das Minhocas, que saiu no ano passado, pela Editora Nova Alexandria, com ilustrações do veterano Orlano Pedroso,  e lindo projeto gráfico do Jean Pierre, maridão da Raquel e meu ex-colega de trabalho. Antes de falar do livro, tenho de falar da autora, jornalista, mãe de uma menininha que deve ter inspirado a personagem principal do livro, a minhoquinha atrevida batizada Ana Beatriz de Sousa e Sousa. Já faz uns bons anos que a Raquel, junto com seu amor Jean, abandonou a loucura de Sampa e foi pra o meio do mato, ao melhor estilo anos 70. Resolveu mudar de mala e cuia para um lindo e remoto recanto na área de Visconde Mauá. A mudança da Raquel tem muitos significados, que eu nem seria louca de tentar explicar, mas pelo que entendo eles foram se desenvolvendo paulatinamente e resultando em vegetarianismo, em mais consciência ecológica e imersão de corpo e alma na natureza.
A Fuga das Minhocas, penso eu, vem na esteira desse compromisso com um estilo de vida sustentável e mais equilibrado e certamente foi inspiradopela presença da filha. A história segue o clássico princípio da jornada. No caso, a viagem de um grupo de minhocas que foge de um herbário em busca de aventuras e no caminho aprende sobre a degradação do ambiente e os perigos do desenvolvimento urbano desordenado. Ao fim da historinha, o papo fica mais sério, proque a autora explica numa linguagem didática, mas leve, o importante papel das minhocas , do lixo orgâncio e da reciclagem.  
O tom da narrativa não tem nada de linguagem de manual, em uma das tiradas a narradora pondera: “E o pior é que Ana Beatriz de Sousa e Sousa estava coberta de terra e de razão”, mas a autora faz questão de deixar claro que o tema é sério. Ela inclusive oferece o link para o blog do livro em que o assunto continua sendo discutido e se pode aprender ainda mais htpp://fugadasminhocas.blogspot.com Eu não sei exatamente a faixa etária que a Raquel, ou a editora, tinha em mente como público alvo do livro e acho difícil definir essas coisas  porque vai depender muito da criança, do nível em que esteja lendo e o vocabulário que já domine. Meu filho tem 7 anos e é leitor avançado em inglês. Também lê em português, mas comparativamente, claro, domina um vocabulário mais limitado. Por isso, lemos juntos este livro e, em alguns momentos, tive que explicar algumas palavras e situações. Felizmente, para os leitores independentes, Raquel oferece um glossário ao final. Minha sugestão é que crianças até 7 anos, ainda que mais familiarizadas com a língua, leiam o livro em família. Eu, particularmente, adoro a ideia de sessões familiares de leitura. No momento estamos lendo a coleção do Harry Potter juntos: um capítulo por noite, depois do jantar. André queria ler os livros sozinho mas achamos que seria um pouco assustador pra ele, especialmente como leitura na hora de dormir, então resolvemos fazer nossos saraus e  tem sido uma delícia! Para um tema como A Fuga das Minhocas, então, a ideia pode ser ainda mais interessante. Pode ser o livro em uma única sessão, mas a partir dela pode-se inspirar a participação das crianças seja organizando a reciclagem do lixo ou, pra quem tem espaço, a compostagem do lixo orgânico, Sem falar que pode ainda convidar a outras discussões como maneiras de engajar a família no processo de economizar energia ou evitar a produção desnecessária de lixo. Raquel inclusive dá algumas dicas básicas neste sentido. Nesses sete anos como mãe, a experiência tem me mostrado que envolver as crianças, oferecendo opções para que tenham a impressão de que elas próprias apresentaram as soluções, faz com que levem a tarefa mais a sério. Vale a pena propor ideias, sem impo-las e delegar responsabilidades, estimulando a agência da criança.Por exemplo, Clara vai ficar responsável de recolher as revistas e panfletos, enquanto Pedro se responsabiliza por todo recipiente plástico reciclável... A leitura em escolas também poderia resultar em projetos interessantes, especialmente nas escolas que ainda contam com um pedacinho de terra onde a criançada possa se sujar um pouco. Vejo até a possibilidade de um projeto mutidisciplinar, integrando artes, ciências, língua...Já pensou que maravilha uma oficina de pintura de sacolas de pano, pra substituir as sacolinhas plásticas da família?
Enfim, o que quero dizer é que A Fuga das Minhocas é literatura infantil engajada, que tem claramente uma poposta e pode ser apenas o começo de uma reflexão mais profunda sobre a nossa relação com a natureza. Lendo o livro da Raquel, eu me lembrei que não muito tempo atrás eu estava saindo do campus da universidade onde trabalho. Era um dia quente de verão, as aulas ainda não tinham começado, tudo estava meio deserto, e então eu vi uma minhoca enorme agonizando no concreto. Embora muito perto do jardim, eu sabia que ela não conseguiriria sobreviver sem ajuda. Comecei então a procurar pedacinhos de papel dentro da bolsa ou gravetinhos no chão pra pegar a minhoca e devolvê-la à terra. Sem saber, uma senhora me observava, provavelemente da janela do escritório dela, e veio me perguntar o que se passava. Quando expliquei, ela não hesitou: foi lá, catou a minhoca com a mão, e em dois segundos devolveu a bichinha pra terra, sã e salva. Eu me envegonhei da minha frescura e da cara de nojo que eu provavelmente fiz, porque ela olhou pra mim e disse: “Agora é só lavar a mão, honey...” No fim, nós duas nos olhamos felizes da “nossa” boa ação. Depois que você conhecer Ana Beatriz Sousa e Sousa e sua turma tenho certeza de que vai me entender.