Minhas introduções aos posts vêm se tornando rotina neste blog e eu me desculpo se parecem excessivas. Simplesmente quero dar um contexto ao texto, quando, a meu ver, se faz necessário. No caso em questão, apenas queria justificar que não foi exatamente minha ideia escrever sobre nepotismo. Este era o tema de um concurso de crônicas do qual eu queria participar. Eu o escrevi muito antes do prazo final do concurso, porque queria tempo para trabalhar nele um tanto, antes de o submeter a julgamentos... Além disso, segundo o regulamento, a crônica tinha de ser minúscula e meu desafio foi cortá-la, cortá-la... Eu fiz isso por semanas, até que a vida me chamou para competições mais urgentes e quando voltei ao texto notei que já tinha perdido o prazo de inscrição. Eu devia ter imaginado que não poderia meramente me esbaldar e relaxar com prazo tão folgado...Banquei a lebre quando estou mais para tartaruga. Por fim, de novo, pra não deixar a iniciativa dormindo nos arquivos do meu computador, decidi publicá-la aqui...e, de vingança, (mil perdões!), a versão original e mais longa. Boa leitura!
Ninguém vai poder dizer que Alicinha não
tentou. A pobre hoje anda pela cidade cabisbaixa, óculos escuros que lhe cobrem
metade da cara gordinha, bonitinha até. Tudo porque ela foi criada naquela
crença meio ingênua meio cristã de que tinha de ajudar a família. Foi assim
desde menina. Filha do meio de cinco irmãos, ficava ali meio perdida sem bem
ter atenção nem de pai nem de mãe. A madrinha é que às vezes se apiedava dela e
levava Alicinha pra passar um dia inteiro no sítio, sem obrigação, só brincando
no balanço de pneu velho que ficava perto
do galinheiro. Os puleiros da madrinha, para alegria da menina,
não tinham mau cheiro como os outros.
Quando Alicinha, dedicada colaboradora do
centro comunitário, primeiro pensou em se candidatar a vereadora ela nem se
lembrou da família. Quer dizer, de verdade, a ideia não foi mesmo dela. Lúcio
Rufino veio com a novidade depois de ver como o pessoal gostava de Alicinha.
“Você tem penetração popular, menina!”, ele veio dizendo com aquela voz de locutor de
rádio. Ela até se espantou com essa definição, que bem podia ser piada do Lúcio
Rufino. Ele tinha dessas tiradas que Alicinha se esforçava pra entender, mas
quase sempre lhe escapavam. Se tivesse ficado só nisso ela teria certeza que era
coisa para não se levar a sério. Só que ele insistiu e começou a espalhar pelo
centro que Alicinha daria uma excelente candidata a vereadora e que seria eleita
com certeza.
Alicinha nunca tinha sonhado com tanto.
Pensava, claro, em ser presidente do centro, afinal já estava na liderança do
grupo por tanto tempo. Ela tinha participado de tanta reunião que a mãe dela
vivia dizendo que era por isso que não se casava. Bobagem, pensava Alicinha, se
foi mesmo numa das reuniões onde ela primeiro viu Marcelo, que foi a paixão da
sua vida. Pena que o Marcelo não percebeu a jóia que Alicinha era e acabou
casando com a Marieta, do coro da igreja. Todo mundo sabe que ele se arrependeu,
apesar de a Marieta ser uma soprano de fazer a gente chorar...
O fato é que Lúcio tinha bom olho pra essas
coisas de política. Por influência dele, logo o presidente do centro entrou em contato com um fulano de um partido político desconhecido, que se instalava em Pradinho e que
ficou bem feliz em indicar Alicinha. Ela teve de se filiar ao partido e queria
usar seu nome completo, mais digno de
figurar na Câmara Municipal: Alice Maria Noronha Gama, que cá pra nós soa
importante. Mas os homens lá (sim porque mulher, mesmo, só ela) disseram que
deveria usar o nome pelo qual era conhecida e que tinha mais “apelo popular” e
pra completar a penetração com o apelo popular, ficou Alicinha mesmo.
Foto: ddpavumba at freedigitalphotos.net |
A família dela no princípio riu da
candidatura. Mas no fim todo mundo se uniu: irmãos, sobrinhos, tios, primos e
primas... Nenhuma campanha foi mais animada em Pradinho e Alicinha comemorou um
feito ainda mais importante: foi a segunda vereadora mais votada em toda a
história da cidade. Tudo bem que Pradinho virou cidade menos de 50 anos atrás,
mas Alicinha não tinha nem 30! Então, claro, motivo pra uma festa de também
bater todos os recordes.
Quando tomou posse, pelo menos quarenta
pessoas na pequena galeria da câmara eram parentes de Alicinha. Alguns, que nem
viviam em Pradinho, foram lá prestigiar o grande momento da “prima”. No
primeiro dia despachando no escritório, com a irmã mais nova, Alzira, que tinha
sido braço-direito de campanha e agora, por merecimento, era assistente de
Alicinha, já era possível perceber que a parentalha não se dispersaria tão
fácil.
Alzira logo informou que Nezinho, o marido
dela, tinha se dedicado muito à campanha também, então não teria nada demais
contratá-lo para chefe de gabinete. Alicinha não queria magoar Alzira, mas
Nezinho nem tinha terminado o ensino
médio e nunca parava em emprego nenhum.
Rodolfo, o irmão mais velho, concordou que a vaga não era pra Nezinho
coisa nenhuma. Cargo de confiança para um cunhado vagabundo como ele? Alzira
chorou, ameaçou ir embora, mas depois de conversar muito com Rodolfo acabou
concordando que ele, sim, daria conta do recado. Ele tinha feito um curso de
Contabilidade em Belo Horizonte e enquanto cuidava do caixa do armazém da
família, bem que podia ajudar a irmã nessa empreitada. Era quase uma obrigaçãofamiliar, senão
cívica. Pelo menos foi isso o que ele disse. Nezinho reclamou e Lúcio Rufino,
afinal de contas idealizador da campanha de Alicinha, ficou mais inconformado ainda
por não ser ele próprio o chefe de gabinete.
Imagine o prestígio que aquele vozeirão não daria ao mandato de
Alicinha.
Foi preciso
a ajuda de Alzira e Rodolfo para enfrentar o primeiro conflito. Nezinho acabou
sendo empregado como motorista da vereadora Alicinha e Lúcio Rufino,
coordenador de comunicação. Como Nezinho
dirigia bem e Lúcio Rufino era super carismático, todo mundo ficou
feliz. Quer dizer, quase todo mundo. Foi
assim que uma semana depois a prima Gisele, um doce de menina, que tinha tanto
futuro e lindos olhos azuis, foi nomeada recepcionista. A sobrinha mais velha, Viviane, ficou encarregada das pesquisas de opinião. E
a gente de Pradinho tinha tanta opinião que ela acabou precisando da ajuda de Valter, seu namorado,
que expandiu o setor de pesquisas consideravelmente.
Hoje fica difícil saber exatamente em que momento
Alicinha virou nepótica. A mãe dela, em princípio, se horrorizou. Não era
nepótica aquela filha de dona Dalila,
que gostava de meninas? Depois de esclarecer a confusão com a mãe e de
consultar a palavra nepotismo no google
, Alicinha teve de se explicar para um comitê de investigação .
Pobre Alicinha, encerrou o mandato tão
promissor depois de menos de um ano,
dois meses , três dias e vinte e oito contratações. Destas, segundo constam nos
autos, dezenove só de familiares. Mas no dia da renúncia a família não apareceu. Nem mesmo Alzira, a
assistente, que resolveu marcar manicure bem no horário do discurso, compungido, de
despedida da jovem vereadora.
Alicinha
caminhou também sozinha pra casa, afinal Nezinho não era mais seu motorista.
Sorte dela que a madrinha a esperava no
portão de casa, com uma cesta de ovos frescos e uma receita de casadinhos.
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