Diminuição
da maioridade penal, sistema prisional e o Projeto Trilhas,
da Associação Horizontes
Eu tenho um filho de 8 anos. Ele nunca
experimentou fome, porque eu ou o pai dele, meu marido, estamos atentos às
necessidades que ele tem desde o dia em que ele foi concebido. Ele só sente
frio quando teima em sair no inverno sem jaqueta. Mas talvez teime porque saiba
que um dos pais vai estar por perto com um casaco quentinho à espera de que ele
resolva vesti-lo. Cada vez que sentimos que ele tem um problema na escola,
imediatamente entramos em contato com os professores e ao menor sinal de um
resfriado mais forte ligamos para a pediatra. Ele nunca teve uma cárie, porque
cuidamos dos dentinhos dele desde que surgiram. Sofreu uma única infecção de ouvido que foi prontamente
tratada com o mínimo possível de antibióticos para não desequilibrar seu frágil
organismo. Ele é inteligente, sadio, confiante. Ele aprende piano e canta no
coral infantil da cidade. Nossa família
não reza nem vai a igreja, mas nosso filho tem um profundo sentimento de respeito
pela natureza, pelos animais e por seus semelhantes. É nosso compromisso
provê-lo com uma base moral consistente, assim tentamos ser modelo de tudo o
que ensinamos e quando, por algum
motivo, erramos, nos desculpamos e mostramos para André que erros acontecem e que pedir
e aceitar perdão faz parte da convivência em sociedade. Mesmo com todos os
cuidados, nem sempre ele diz obrigado ou por favor, embora em geral tenha boas
maneiras. Expandindo essa ideia, imagino que no futuro, quando puder escolher,
ele possa, apesar de todos os nossos esforços, fazer más escolhas. Talvez ele se
esqueça do que aprendeu, talvez ele se rebele contra nossa forma de educar...
Sei lá, é a lei do livre arbítrio e tudo pode acontecer. O que sei é que quero que ele estude, se
eduque, viaje, tente compreender o mundo e seja uma pessoa feliz, um cidadão
participante, um ser humano decente.
Difícil mesmo é imaginar como uma criança
que foi indesejada, que cresceu sofrendo coisas que nem gente grande está
preparada para suportar, num ambiente de violência e privada de cuidados
básicos pode se transformar em um adulto saudável e bem integrado ao meio
social. Eu estudei um bocado nesta vida mas nunca aprendi muito sobre
psicologia, pelo menos não no sentido acadêmico da palavra. Ainda assim, me
parece óbvio que uma criança submetida a maus tratos e a desrespeito de todo
tipo, que não tenha sequer se alimentado propriamente, tenha poucas chances de seguir um “bom
caminho”. Isso já é suficiente para me
convencer de que mandar um menino delinquente para uma prisão adulta aos 16
anos não vai resolver o problema dele e menos ainda reverter o quadro de violência
que assola o Brasil. Ao contrário, vai piorar um sistema prisional já
sobrecarregado e corrompido. Um estudo de 2007 dá conta que 90% dos detentos
voltam a delinquir e acabam regressando à prisão. Esse dado sozinho mostra a
ineficácia alarmante do nosso sistema penitenciário. Dados do mesmo estudo
apontam que 95% dos que hoje povoam as prisões são de classes pobres,excluídos
sociais, analfabetos ou com baixo nível de instrução. Há um número imenso de
presos que aguarda benefícios judiciais a que têm direito, como prisão
semi-aberta. Outros estão depositados em distritos policiais sem nenhuma
estrutura para recebê-los. Um dos
últimos censos penitenciários revelou que 40% de todos os prisioneiros, sentenciados ou
não, estão sob guarda da polícia civil, ou seja, profissionais não treinados
para o serviço carcerário, nos DPs da vida.
A transferência desses detentos é prorrogada e em muitos casos jamais
concretizada, por falta de leitos nas penitenciárias. Cerca de 20% de todos os
prisioneiros são portadores do vírus da
Aids. Revista CEJ (Rafael Damaceno de Assis, Revista CEJ,
Brasília, Ano XI, n. 39, p. 74-78, out./dez. 2007).
Esses números não são os mais recentes ,
mas duvido que a situação tenha melhorado significativamente nos últimos cinco anos.
Os acontecimentos das últimas semanas em São Paulo, em que o crime organizado age
de dentro das prisões, nas barbas do poder público estadual e com a sua conivência,
apenas atualizam a gravidade e o horror dessa realidade. Parece absurdo
imaginar que este sistema carcerário falido possa receber um contingente extra
de sentenciados na faixa etária de 16 a 18.
Se isso vier a acontecer, obviamente o caos tende a se expandir e, ainda
mais evidente, é a certeza de que qualquer recuperação vai ser vetada a esses
adolescentes.
É intrigante como as pessoas, mesmo aquelas
razoavelmente bem informadas, tendem a se apegar a explicações simplistas para
justificar suas posições diante de questões complexas. É comum, por exemplo,
ouvir que a alteração da idade penal intimidaria os jovens criminosos
porque eles pensariam duas vezes antes
de um ato ilegal, sabendo que seriam julgados como adultos. Argumento semelhante aqui nos Estados Unidos, dos
partidários da pena de morte, ignora estudos apontando que não há relação
comprovada entre a diminuição de crimes violentos nos estados que executam seus criminosos. Duvido que meninos
ou meninas sem estrutura, que sofrem abusos de todo tipo e sem nenhum exemplo
de conduta vão deixar de cometer um crime por ponderar suas consequências legais. Outra ideia batida
é a que os adultos deixariam de usar menores em seus crimes se eles não fossem legalmente
tratados como menores. De fato, não
creio que os exploradores de menores estejam preocupados em poupá-los da prisão
ou da punição.
Infelizmente,essa lógica passa a prevalecer sobre medidas mais profundas e de múltiplos níveis de abrangência, como por exemplo
a necessidade da pressão da sociedade civil organizada
sobre o governo, em todos os níveis, exigindo educação inclusiva e de qualidade e a ação efetiva contra o desfacelamento do
núcleo familiar , com a criação de mais programas e atividades para depois do
período escolar e de mais espaços públicos seguros na área metropolitana e nos
bairros pobres das grandes cidades. Em vez de acoes preventivas e de acompanhamento o que se busca é que o poder
público se ocupe em encarcerar mais
jovens, que serão devolvidos às ruas ainda mais violentos.
Em um dos meus contos favoritos de Machado
de Assis, “Ideias de Canário”, um canário falante só é capaz de reconhecer o
ambiente que o cerca no momento presente. Ele não se lembra dos lugares onde
viveu antes e imagina que o mundo não vá além de seu campo de visão. O canário
alienado de Machado servia como metáfora para uma outra época e outros
problemas, mas como a maioria do que Machado escreveu ainda é curiosamente contemporâneo. É mais do que hora de a sociedade brasileira
passar a enxergar além do muro do seu próprio condomínio, que vai ficando cada
vez mais alto e ineficiente, porque o que acontece do lado de fora também é
responsabilidade nossa.
Não creio que imaginar uma sociedade em que
todas as crianças, como meu filho, tenham direito e acesso a comida, segurança,
carinho, proteção integral, física e psicológica, seja quixotesco. Nossos
moinhos de vento são tragédias pessoais e comunitárias bem palpáveis. Irreal é
acreditar , mais uma vez, que uma medida legal vá convenientemente abolir o
problema do menor abandonado.
Mas falando em Quixote, eu por minha vez respeito
e admiro esses “quixotes”, profissionais e voluntários, que longe de se
iludirem com simplificações criam estratégias de ação social e trabalham por
soluções. Entre eles, quero destacar a Associação
Horizontes http://www.ah.org.br/, uma organização sem fins lucrativos com sede
em São Paulo. Eu tomei conhecimento do trabalho desta ONG por meio de minha
amiga Heloísa Sousa Dantas, coordenadora de projetos dessa organização e,
conhecendo a Helô, sabia de cara que o projeto é sério. No dia 14
de dezembro a Horizontes vai promover um bazar, por meio de seu projeto
Trilhas, que objetiva levantar fundos para projetos voltados a esses jovens que
precisam de apoio efetivo para encontrar um lugar na sociedade. Para que
possam, em última instância, levarem vidas produtivas e felizes. Faço um apelo
aos que têm espírito natalino ou não a assistirem o vídeo da Horizontes/Trilhas
http://www.youtube.com/watch?v=5DCYhM11ZTo
e se engajarem seja contribuindo com
dinheiro ( o site diz como se pode doar), com produtos para o bazar ou com a
divulgação do trabalho da Horizontes. O primeiro passo é reagir contra a inércia
do senso comum, que prefere crer, como o canário machadiano, que ao retirar um
problema de seu campo de visão, este automaticamente deixa de existir.
3 comments:
Parabéns Heloísa pelo projeto e valeu Selminha pela prosa bem pensada e provocadora. A teoria Machadiana sempre oferece uma perspetiva...
Axé, Selma!!!
Oi Selma! Que legal ver vc online!!!
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