Wednesday, August 3, 2011

Noite na Espanha


Uma história familiar para ninar el niño

Algumas noites atrás, por falta de histórias novas, meu filho, um pequeno devorador de livros, me pediu pra inventar uma história qualquer. Eu, que em outros tempos me virava em conto, a troco de qualquer ideia, por besta que fosse, me vi em apuros. A criatividade tem minguado, bem sei. E com meu menino estendendo seus olhos grandes , na expectativa de uma boa história, me intimido. Às vezes capitulo. Proponho uma canção, assim já pronta, que eu simplesmente cante, na minha voz hesitante, e vez por outra fora de tom, mas que já está no repertório da casa, na ponta da língua. Aquela noite, porém, era diferente. Estávamos cansados do dia intenso de passeios em Granada,cidade- estrela da Andaluzia. Depois de um banquete de vistas a partir das torres dos castelos; de subir e descer escadarias e ruas de pedra, descansávamos numa casinha branca, encrustada num vale na vila de Pinos Genil, uns poucos quilômetros fora de Granada. Isso tudo, sim, inspirava história.

Uma das vistas de Granada, a partir de Alhambra
Eu e André, na simpática vila de Pinos Genil.
Foi então que decidi pela primeira vez contar ao André um outro tipo de ficção; uma história que ouvi muitas vezes durante a infância, provavelmente aumentada ou alterada, mas que de tanto ouvir foi se desenhando como fato na minha cabeça, sem nunca perder um gostinho de mito, um certo encantamento dos contos de fada. Vir a Granada, afinal, era o que eu precisava para depois de todos estes anos me reencontrar com esse conto familiar e reparti-lo com meu filho.
De alguma parte dessa Granada velha, caliente, convidativa vieram meus bisavós,Christóban e Francisca, pais de meu avô materno. Provavelmente porque o bisavô morreu quando meu avô era ainda muito menino, pouco figurava nas histórias recontadas. Era como se nosso vínculo com a Espanha viesse somente da bisavó. Ela que morreria bem mais tarde, mas antes do meu nascimento. Ela que, de fato, morreu há exatos 50 anos, e que por muito tempo alimentou as fantasias desses bisnetos que ela nunca chegou a conhecer.
Foi sempre sobre ela, a “Vó Chica”, que ouvimos falar:  uma mulher forte, não exatamente amada por todos;  uma matriarca durona cuja autoridade fazia tremer os três varões, seus filhos, um deles meu avô querido.
Vó Chica teria sido uma espécie de viúva negra: casou-se três vezes e três vezes enviuvou, criando os filhos sozinha. Contam que ela amava Christóban, nosso bisavô, mas que ele não era o eleito da família. Diante da oposição familiar, ela teria então se casado com um toureiro, o qual morreria vítima de um touro, já no primeiro ano do casamento. Graças  aos humores do tal touro, Francisca, então viúva e sem filhos, teria finalmente se casado com Christóban, segundo nossa lenda familiar, sua verdadeira paixão.  Do casamento nasceu o primeiro filho, Sebastião (imagino que Sebastian, tenha sido seu nome originalmente) e pouco tempo depois, por razões que nunca constaram das nossas histórias, a pequena família rumaria para o longínquo Brasil. Diz-se que, à época, vó Chica já trazia no ventre o segundo filho, meu avô, Antônio, que nasceu em abril de  1917 em terras brasileiras, mais precisamente na cidade de Santos, onde o navio que trouxera sua família aportara.
 Meu avô contava que em Santos morou no Morro Mont Serrat e que enquanto a mãe lavava roupas para fora, o pai carregava de tudo nas docas do Porto de Santos, em torno do qual a vida dos moradores do morro em grande parte girava. Meu avô não se lembrava do pai, mas tinha ouvido que ele bebia muito, e como em vez de escrever poesias levava peso nas costas, o álcool e as noites no cais não faziam dele exatamente um herói romântico.  Mas como um poeta finissecular boêmio, o bisavô teria morrido de um mal do pulmão.
Ao que consta, enquanto Christóban trabalhava nas docas do Porto de Santos, a mulher lavava roupas para fora. Uma pesquisa rápida mostrou que desde o fim do século XIX, até as primeiras décadas do século XX, Santos era conhecida como a “Barcelona brasileira”, tal era o número de espanhóis na cidade, proporcionalmente em relação ao resto do país. Uma das razões cogitadas para isso é que os espanhóis, ao contrário dos imigrantes italianos, por exemplo, eram citadinos. Teriam vindo em busca de fazer fortuna ou pelo menos refazer a vida em atividades urbanas. Tal como Christóban e Francisca, muitos dos moradores do morro trabalhavam no porto ou prestavam serviços como a lavagem de roupas. Descobri também que o Monte Serrat, morro santista onde viveram meus antepassados, era dividido por espanhóis e portugueses, na maioria. Talvez por isso, quando se casou pela terceira vez, tenha sido um português o marido escolhido por Vó Chica. Foi a ele que meu avô conheceu como pai e com ele vó Chica teria seu terceiro filho, outro Antônio! Único caso que conheço de irmãos que têm o mesmo nome... Diz a lenda que o marido português queria um filho Antônio e como meu avô não era seu filho biológico, não valia… Eu me lembro bem deste tio-avô que conhecíamos por Tio Russo. Como ele era bem mais claro que os irmãos, ficou assim designado. A alcunha, ainda que estranha, deve ter facilitado a vida da família, com seus dois Antônios...
Não se sabe bem quais as razões, mas a família aumentada deixaria Santos, com sua extensa comunidade espanhola, e como tantos agricultores rumaria para o oeste paulista. Mas sei que o terceiro casamento também não durou muito, porque o tétano, naquela época ainda ameaçador, clamou a vida do português e levou Vó Chica à sua terceira viuvez. 
Foi em Araçatuba, a terra do "boi gordo", lavando e engomando pra fora, que ela criou os filhos. Sentindo o calor que faz no verão de Granada, imagino que o calorão de Araçatuba não tenha intimidado minha destemida bisavó; me enche de tristeza, porém, pensar que ela jamais pousou os olhos novamente na beleza dessa sua terra natal. Eu não tenho dúvida que ela fez do Brasil, seja  em Santos seja em Araçatuba, sua pátria. Sempre nos fizeram crer que seu pragmatismo não deixava espaço para saudades e devaneios e isso, de alguma forma, me conforta. Ao morrer, a matriarca que usava o cabelo trançado preso na altura da nuca, deixou uma casa para cada filho: uma propriedade ao lado da outra. A casa menor para o filho caçula, que tinha só dois filhos, e a maior para meu avô, pai de 12 crianças!
Enquanto André adormecia pensando nessa história tão distante que parecia ter saído de um dos castelos de Alhambra, eu ouvia Genil, o riozinho que corta o pueblo. Em vez de prece, ofereci esse canto do rio e sua brisa à memória de Vó Chica, cujo legado dividi com meu filho,  na terra onde ela nasceu.

1 comment:

Selma said...
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