Monday, August 18, 2014

Existe amor em SP

Fazendo as pazes com minha cidade, ou parte dela

Foto de Daniel Mitsuo, Vale do Anhangabaú, 2009, https://flic.kr/p/7fCbCd

Sou paulistana, nasci no Ipiranga, passei a primeira infância na parte velha do Brás e também ali, onde hoje fica a estação Bresser do metrô. Com a expansão da cidade, a especulação imobiliária e as muitas crises econômicas que assombraram o país, minha família foi sendo empurrada para o lado leste da metrópole, no meio dos anos 70, fase dura da ruína do chamado “milagre econômico”.  Já adulta, lancei âncora na Vila Mariana,  até que mudasse de vez para os Estados Unidos já se vão 16 anos.

Estando fora, como se pode imaginar, a gente se sente mais brasileira. Só que para quem nos vê de longe, parecemos o mesmo. Pouca gente suspeita que a cidade que te formou tem uma influência forte no seu jeito de ser brasileiro ou brasileira. Eu fui aos poucos percebendo isso. Enquanto tentava digerir minha ambiguidade, meu amor e ódio por essa cidade opressiva, fui mais e mais me convencendo de que esta desvairada, apesar de cinzenta e sufocante, é de uma singularidade avassaladora. E não reclame se pareço ter usado adjetivos demais. Nada traduz mais São Paulo do que os excessos. Excesso de gente, de carros, de prédios, de problemas…Mas também fartura de coisas para fazer, ver, comer, entender, conhecer e, por que não, reconhecer… Foi exatamente isso o que fiz nesta última estada paulistana, num inverno típico de aquecimento global, em que o agasalho ficava no fundo da bolsa, enquanto eu cruzava a cidade sob um calor de 29 graus!

Depois de tantos anos, fui me instalar em plena rua da Consolação, na sua parte mais central, quase esquina com a curta mas imponente Avenida São Luís e muito perto do prédio que já abrigou o Estadão e o defunto Diário Popular, onde eu mesma trabalhei por dois anos, numa outra vida.

Tal qual uma mocinha recém-chegada do interior, me vi deslumbrada com a intensidade do centro. Investida de olhos de turista e curiosidade descompromissada, me vi um dia sair sob o sol matinal e caminhar até a Praça Roosevelt.   Observei gente jovem com e sem skate. Bem perto da tribo de skatistas, encontrei uma roda de senhoras com seus cachorrinhos, numa familiaridade que denuncia que as reuniões devem ser cotidianas. Quase não reconheci a praça voltando lá numa noite fria e chuvosa, para ver uma peça de teatro no Espaço Parlapatões e fechar a noite tomando sopa e cachaça mineira no Papo, Pinga e Petisco.

Nosso programa familiar favorito era andar algumas tardes, cruzando o viaduto do Chá, pra tomar cafezinho acompanhado dos doces portugueses da Casa Mathilde, lá no centro velho.  Num dia qualquer, em que tivemos a chance de passear sem nosso filho, fizemos programa mais adulto: almoçamos no café do Teatro Municipal e de lá caminhamos até o Correio Central para uma exposição gratuita sobre o trabalho de Dorival Caymmi, onde eu me permiti brincar de cantora de rádio.

Encontramos amigos para compartilhar nosso achado: um restaurante tradicional, o Itamarati, também no centro velho. Comida boa, garçons gentis e graças à media de idade da clientela presente, o doce sentimento de que, afinal, não somos os únicos a envelhecer nesse mundo…

Para lembrar dos meus roteiros nos anos 80, foi bom também rever a Galeria Metrópole, um projeto arquitetônico do qual ninguém fala, talvez porque fique ali tão perto do famoso Copan. Aliás, lá, numa outra das poucas noites invernais, fomos provar do cardápio do Bar Dona Onça, uma pedida um tanto estranha para uma família que não come carne vermelha. Mas uma experiência interessante, sem dúvida.

Rever os corredores e colunas da Biblioteca Mário de Andrade também me remeteu a outros momentos da minha biografia e me fez questionar por que não constróem um café naquele pátio tão simpático? O próprio Mário de Andrade, tenho certeza, aprovaria!

Nessas semanas brincando de turista em minha própria cidade, descobri bequinhos, lugares insólitos, vistas que  devem ter passado despercebidas: um restaurante por quilo, do qual se vê a Câmara Municipal, uma ruela-ladeira que sai da Rua Santo Amaro, um pastel de feira na Major Quedinho e o clima festivo da noite na Rua Avanhandava, bem mais simpatico que os preços exorbitantes das famosas pastas do Famiglia Mancini. Disposta à reflexão, fiquei feliz até mesmo avistando o pátio interno do Shopping Light, que um dia abrigou a companhia de luz de mesmo nome, tomando um cafezinho no Grão Espresso.

Acho que essa cidade louca está tentando me convencer de que tenho por ela mais amor do que ódio: ter o Belas Artes reinaugurado exatamente agora? E ter exposição gratuita de Os Gêmeos na Barra Funda? E o documentário Cidade Cinza, também de graça, no Frei Caneca?  Tomo café (outro!) na Pinacoteca,  incrédula sobre a  sobrevivência daquelas árvores tão velhas do Jardim da Luz. Aliás, na Xavier de Toledo tem uma árvore que deu flor em julho! Muita flor, numa cidade seca e poluída! Diz uma amiga minha que as árvores paulistanas produzem flores por stress. É a reação delas às agressões diárias. As árvores, mais sábias, devem ter entendido o que só agora posso suspeitar…Afinal, que me perdoe o Criolo, de quem sou fã, mas, sim, existe amor em SP. E que a cidade continue florescendo...

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