Fazendo as pazes com minha cidade, ou parte dela
Foto de Daniel Mitsuo, Vale do Anhangabaú, 2009, https://flic.kr/p/7fCbCd |
Sou paulistana, nasci no Ipiranga, passei a primeira
infância na parte velha do Brás e também ali, onde hoje fica a estação Bresser
do metrô. Com a expansão da cidade, a especulação imobiliária e as muitas
crises econômicas que assombraram o país, minha família foi sendo empurrada
para o lado leste da metrópole, no meio dos anos 70, fase dura da ruína do
chamado “milagre econômico”. Já adulta,
lancei âncora na Vila Mariana, até que
mudasse de vez para os Estados Unidos já se vão 16 anos.
Estando fora, como se pode imaginar, a gente se sente mais
brasileira. Só que para quem nos vê de longe, parecemos o mesmo. Pouca gente suspeita
que a cidade que te formou tem uma influência forte no seu jeito de ser
brasileiro ou brasileira. Eu fui aos poucos percebendo isso. Enquanto tentava
digerir minha ambiguidade, meu amor e ódio por essa cidade opressiva, fui
mais e mais me convencendo de que esta desvairada, apesar de cinzenta e
sufocante, é de uma singularidade avassaladora. E não reclame se pareço ter
usado adjetivos demais. Nada traduz mais São Paulo do que os excessos. Excesso
de gente, de carros, de prédios, de problemas…Mas também fartura de coisas para
fazer, ver, comer, entender, conhecer e, por que não, reconhecer… Foi
exatamente isso o que fiz nesta última estada paulistana, num inverno típico de
aquecimento global, em que o agasalho ficava no fundo da bolsa, enquanto eu
cruzava a cidade sob um calor de 29 graus!
Depois de tantos anos, fui me instalar em plena rua da
Consolação, na sua parte mais central, quase esquina com a curta mas imponente
Avenida São Luís e muito perto do prédio que já abrigou o Estadão e o defunto
Diário Popular, onde eu mesma trabalhei por dois anos, numa outra vida.
Tal qual uma mocinha recém-chegada do interior, me vi
deslumbrada com a intensidade do centro. Investida de olhos de turista e
curiosidade descompromissada, me vi um dia sair sob o sol matinal e caminhar
até a Praça Roosevelt. Observei gente jovem com e sem skate. Bem
perto da tribo de skatistas, encontrei uma roda de senhoras com seus cachorrinhos,
numa familiaridade que denuncia que as reuniões devem ser cotidianas. Quase não
reconheci a praça voltando lá numa noite fria e chuvosa, para ver uma peça de
teatro no Espaço Parlapatões e fechar a noite tomando sopa e cachaça mineira no
Papo, Pinga e Petisco.
Nosso programa familiar favorito era andar algumas tardes, cruzando o
viaduto do Chá, pra tomar cafezinho acompanhado dos doces portugueses da Casa
Mathilde, lá no centro velho. Num dia
qualquer, em que tivemos a chance de passear sem nosso filho, fizemos programa
mais adulto: almoçamos no café do Teatro Municipal e de lá caminhamos até o
Correio Central para uma exposição gratuita sobre o trabalho de Dorival Caymmi,
onde eu me permiti brincar de cantora de rádio.
Encontramos amigos para compartilhar nosso achado: um restaurante
tradicional, o Itamarati, também no centro velho. Comida boa, garçons gentis e graças
à media de idade da clientela presente, o doce sentimento de que, afinal, não
somos os únicos a envelhecer nesse mundo…
Para lembrar dos meus roteiros nos anos 80, foi bom também
rever a Galeria Metrópole, um projeto arquitetônico do qual ninguém fala,
talvez porque fique ali tão perto do famoso Copan. Aliás, lá, numa outra das
poucas noites invernais, fomos provar do cardápio do Bar Dona Onça, uma pedida
um tanto estranha para uma família que não come carne vermelha. Mas uma experiência
interessante, sem dúvida.
Rever os corredores e colunas da Biblioteca Mário de Andrade
também me remeteu a outros momentos da minha biografia e me fez questionar por
que não constróem um café naquele pátio tão simpático? O próprio Mário de
Andrade, tenho certeza, aprovaria!
Nessas semanas brincando de turista em minha própria cidade,
descobri bequinhos, lugares insólitos, vistas que devem ter passado despercebidas: um
restaurante por quilo, do qual se vê a Câmara Municipal, uma ruela-ladeira que
sai da Rua Santo Amaro, um pastel de feira na Major Quedinho e o clima festivo
da noite na Rua Avanhandava, bem mais simpatico que os preços exorbitantes das
famosas pastas do Famiglia Mancini. Disposta à reflexão, fiquei feliz até mesmo
avistando o pátio interno do Shopping Light, que um dia abrigou a companhia de
luz de mesmo nome, tomando um cafezinho no Grão Espresso.
Acho que essa cidade louca está tentando me convencer de que
tenho por ela mais amor do que ódio: ter o Belas Artes reinaugurado
exatamente agora? E ter exposição gratuita de Os Gêmeos na Barra Funda? E o
documentário Cidade Cinza, também de graça, no Frei Caneca? Tomo café (outro!) na Pinacoteca, incrédula sobre a sobrevivência daquelas árvores tão velhas do
Jardim da Luz. Aliás, na Xavier de Toledo tem uma árvore que deu flor em julho!
Muita flor, numa cidade seca e poluída! Diz uma amiga minha que as árvores paulistanas produzem flores por stress. É a reação delas às agressões diárias. As árvores, mais
sábias, devem ter entendido o que só agora posso suspeitar…Afinal, que me perdoe o Criolo, de quem sou fã, mas, sim, existe amor
em SP. E que a cidade continue florescendo...
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